Wednesday, December 20, 2006


FINALMENTE, O MEU SOUZA-CARDOSO

Por volta dos anos sessenta, tomei de renda uma casa de pedra numa freguesia situada a setenta quilómetros de Mação. Aí, passei o Inverno mais frio de que tenho memória. Vivi-o praticamente deitado na cama e com a lareira sempre com lume alto. Um dia acabaram-se os mantimentos e não tive outro remédio senão deslocar-me a Vila da Feira, que creio ser a povoação mais próxima da tal aldeia - cujo nome esqueci - para comprar mantimentos. Quando vinha a sair da mercearia com os produtos que me iriam permitir entrar nos lençóis por mais uns bons quinze dias, fui reconhecido por uma pessoa com que eu me relacionara em Lisboa, no bairro de Campo de Ourique. Ele pertencia a um grupo que cometia crimes sistemáticos contra a segurança do Estado reunindo-se clandestinamente aqui e ali. Uma dessas reuniões até teve lugar na minha residência, na rua Almeida e Sousa. Nunca percebi como é que meia dúzia de papéis poderiam fazer perigar a querida ditadura do saudoso putanheiro de Santa Comba Dão (Felícia Cabrita dixit)... Ele fez-me sinal para eu não me desmanchar. Assim fiz. Meti-me no carro, andei um quilómetro e depois parei na estrada à espera dele. Pouco tempo depois apareceu o tal conhecido. Arranquei com ele até à aldeia, que não tinha mais do que quinze casas. Esperamos que ficasse escuro e depois enfiei-o na minha. Escusado estar a perguntar fosse o que fosse. Ele estava fugido. Um dia, quando lhe calhou foi-se. Deixou-me de oferta um Amadeo de Souza-Cardoso, como agradecimento à minha hospitalidade. Nunca mais o vi. Nem mesmo depois do 25 de Abril o descobri entre os que assaltaram o Estado e que, ainda hoje, por lá andam. Morreu? Não sei! Quando a campanha da caça ao geodésico acabou, regressei a Lisboa trazendo comigo a pintura. Nesta cidade habitei em quartos e em apartamentos. Quando havia cacau: apartamento. Teso: dona Filomena e os seus quartos de aluguer. Era a vida, ora se era! A dona Filomena era uma gaja porreira. Dizia-me sempre: o senhor Melito está sempre a saltar. Arranje uma fixa e vai ver que é melhor. O senhor precisa de assentar. Talvez motivado pelas boas palavras da querida senhora, arranjei uma fixa. Depositei-lhe o Amadeo e nunca mais a vi. A fixa emigrou para França levando consigo a lembrança do fugitivo. Casou, teve filhos e filhas. A fixa morreu. Uma das filhas encontrou na cómoda entre os seus pertences o Amadeo enrolado num papel. Nesse papel estava escrito: “este desenho pertence ao Melito dos Açores que me deu para guardar” - Isto não lhe dizia nada até que um dia ao falar com um açoriano de São Miguel perguntou se ele conhecia quem era o Melito dos Açores. Por acaso o micaelense conhecia-me, pois tinha estado preso comigo no mesmo estabelecimento... Recebi o Amadeo via CTT com uma pequena carta a contar-me a morte da mãe e do achado da pintura. “A desenhar desta maneira, como poderia minha mãe ter gostado de si?”
Há cada Pai Natal!
manuelmbento
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